27 de dezembro de 2013

Especial: Akihabara - Parte 1





Akihabara se tornou algo maior que si mesma. Ocultada pelo mito moderno do “Cool Japan”, nos desconectamos de sua essência bruta.

Tudo que percebemos na cidade é sua cultura nerd e novas tecnologias. Na verdade, no último século a área foi conduzida por empresários ousados sempre alinhados a novas tendências de mercado, sendo que mercadorias otaku são apenas o item mais recente numa longa linha de serviços. Nesta série eu espero oferecer uma perspectiva para trazer a ilusão mais perto da realidade, junto com uma apreciação renovada por Akihabara.

Através dos próximos 4 posts, vamos mergulhar na história de Akihabara para descobrir as circunstâncias que a permitiram evoluir de mercado negro para cidade de eletrônicos, e da Meca otaku a queridinha da mídia. Grande parte da informação vem dos livros “Akiba Confidential” e “Aprendendo com Akihabara: O Nascimento de uma Personalópolis”, bem como pesquisas e observações pessoais feitas vivendo no centro de Tóquio.

Na Parte 1, vamos olhar os primeiros desenvolvimentos no local, antes até mesmo de ser chamado de Akihabara, bem como apresentar as peças-chave da explosão de popularidade dos animes em meados da década de 90, a ser debatida melhor na Parte 2. Texto original publicado no blog Tokyo Scum.



Post de estreia do colaborador WL no Animecote. Podem entrar em contato com ele através de seu perfil no Twitter.



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Começo Humilde


A primeira coisa importante que Akihabara fez foi queimar.

Em 1869, um incêndio arrasou a terra entre Kanda e Ueno, reduzindo as moradias a restos fumegantes e dando boas vindas nada agradáveis ao recém instaurado governo Meiji. Edo, rebatizada de Tóquio no ano anterior, continuava sendo um barril de pólvora altamente habitado só esperando fagulhas aleatórias, incêndio, ou chamas famintas de distritos vizinhos se espalharem descontroladamente pela cidade. Foi considerado mais prudente usar a nova área arrasada como uma maneira de impedir incêndios de se alastrar do que arriscar recursos reconstruindo uma região.

Não seria assim por muito tempo. No ano seguinte, o governo construiu um pequeno templo xintoísta chamado Chinka-Sha, ou "Templo Extintor", no local do velho castelo de Edo como vigia contra eventuais incêndios. Aparentemente os cidadãos não foram muito bem informados disso, já que eles acreditaram que se tratava de um templo dedicado a Akiba, divindade conhecida por controlar chamas. Esse engano virou oficial quando o terreno ao redor do templo ganhou o nome de Akiba no Hara, ou "Terra de Akiba".

Akihabara começa sua história como uma espécie de porta de entrada para Tóquio, mas isso não duraria tanto. A localização da área no rio Kanda a conectava a Baía de Tóquio, fazendo-a um local importantíssimo de comércio internacional. Em 1890 a área foi conectada a Ueno através da Linha Tohoku, que foi estendida até Tóquio em 1925, fazendo com que a estação (até então exclusivamente de carga) fosse usada para transporte público como uma maneira de elevar turismo como parte do projeto de recuperação depois do Grande Terremoto de Kanto de 1923.

Estação de Akihabara em 1925


Foi por essa época que um erro de escrita mudaria o nome de Akibahara (あきばはら) para Akihabara (あきはばら)- um engano razoável considerando que as leituras de Kanji de nomes próprios são tão confusas quanto os dialetos locais que os atrapalham.


Mercado atacadista antes da guerra


Distribuidores, atacadistas, o nome não importa: qualquer um inescrupuloso o bastante para arranjar dinheiro não importando o método se estabeleceu no lugar que, em 1935, era oficialmente designado como um mercado de frutas e legumes. Enquanto isso, madeireiros e transportadores começaram a se assentar em habitações ao longo do rio. A infraestrutura atraiu gente e capital. A tecnologia atraiu os primeiros otakus: fanáticos por trens.

Interior de estação de carga por volta de 1945


Trilhos elétricos eram tecnologia de ponta, e com sua fartura de estações grandes ou pequenas, a região de Kanda era o coração pulsante de onde todas as artérias de aço partiam. Tetsudo Otoko, ou Homens Trem (como eles eventualmente seriam nomeados), encontraram solidariedade quando o Museu de Transportes de Tóquio abriu com grande festa em 1936. Com a mania por trens no ápice, ninguém imaginaria que já haviam otakus arcaicos entre elesm preparando o solo para as eventuais sementes do "moe" que serão discutidas melhor em posts futuros.



Museu dos Transportes


Em 1936, o Museu dos Transportes foi movido dos arredores da Estação de Tóquio para um prédio reformado depois do Grande Terremoto de Kanto, dentro da recém-desativada Estação Manseibashi, nas margens do rio Kanda. As exposições foram novamente movidas para Saitama em 2007, para o Museu Ferroviário.



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A Influência dos Conflitos Internacionais e a Guerra Interna de Preços


O mercado mudou de verduras para válvulas eletrônicas em 1937 com a explosão da Segunda Guerra Sino-Japonesa, mudando a atenção do país do comércio atacadista para comunicações sem fio com propósitos militares. No começo dos anos 40, peças eletrônicas viraram as mercadorias mais importantes do lugar e quitandas de frutas começaram a falir. Akihabara, um bazar de equipamentos eletrônicos do tamanho de uma cidade, manteve a máquina de guerra high-tech bem alimentada. O gosto por rádios permaneceria por muito tempo depois da derrota japonesa nas mãos dos Aliados.

Depois da 2ª Guerra Mundial, o país estava dizimado, humilhado e empobrecido. Mas a vida continua, especialmente para aqueles espertos o bastante para se aproveitar do sistema. Para uma população faminta, arroz era um produto precioso que valia mais que a própria vida. Mesmo assim, era superado pelo rádio. Estudantes de engenharia da Universidade Tokyo Denki colocariam as mochilas nas costas e vasculhariam o mercado atrás das melhores ofertas. Se o valor de uma válvula eletrônica seria 1 sho, um rádio completo custaria 10 sho! Nada mau para um universitário esfomeado rodeado por uma população igualmente esfomeada.


Impostos e preços caros ajudaram a cultura do rádio amador florescer


Essa farra não duraria muito tempo. O Comandante Supremo MacArthur proibiria o comércio irregular em 1949. Na teoria, era parte de um grande projeto de infraestrutura para alargar estradas e regularizar o comércio. Na prática, ele acabou com o direito de assembléia dos cidadãos como uma forma de que nenhuma brasa comunista se tornasse uma chama anti-americana.

Os feirantes não aceitariam isso calados. O Sindicato de Comerciantes pressionou o governo, e o governo de Tóquio e a Ferrovia Nacional Japonesa responderam cedendo aos mercadores terrenos perto da Estação de Akihabara. Os comerciantes burlaram a imposição de MacArthur fornecendo recursos para construção de lojas de tijolo e concreto. Sato Musen, Ishimaru Denki e outras companhias importantes começaram aqui, como grandes prédios em comparação às barraquinhas de feirantes.

Os sete andares do Radio Kaikan seriam o mais icônico deles. Inaugurado em 1962, traçando tendências através das lojas que abrigou ao longo dos anos, revelando a história da cidade como camadas de sedimentos na crosta terrestre.


Rádio Kaikan no ano de sua inauguração


Os vendedores de eletrônicos agora estavam organizados e prontos para faturar em cima do milagre econômico pós-guerra. Através dos anos 60, rádios, junto com máquinas de lavar e geladeiras formavam a santíssima trindade dos eletrônicos domésticos. O povo ironicamente se referia a esses produtos como "Mikusa no Kamudakara", ou Três Tesouros Sagrados, título geralmente reservado para a espada, pérola e espelho da mitologia xintoísta que serviam como símbolos do imperador. Esses bens revolucionaram a vida das pessoas, para depois evoluir para a trilogia de TVs, freezers e aparelhos de som.

A esperança colocada nos eletrônicos era uma metáfora perfeita para a visão otimista do povo para o futuro. Essa veneração de eletrônicos e tecnologia deu poder para a geração atual, para então apunhalar a próxima. O futuro fantástico prometido pela Era Espacial literalmente ficou sem combustível devido à crise do petróleo dos anos 70, permitido que a realidade atual de problemas sociais e ambientais ultrapassasse essa ilusão.

Crianças que cresceram com a aterrissagem na lua e com Ultraman e sua Patrulha Científica caçando monstros gigantes estavam descobrindo, da pior maneira, que a fronteira final ficava mais perto do que eles imaginavam - provavelmente atrás de uma mesa de escritório.

Com os sonhos destruídos, a juventude foi tomada por um sentimento de perda e traição semelhante a quando o país assolado pela guerra recebeu a notícia de que seu imperador, diferente do que eles haviam acreditado a vida toda, não descendia dos deuses. O Japão pós-guerra compensou essa perda focando em reconstruir o país e colher os frutos da industrialização. As crianças dos anos 70 não tinham essa luxúria - ou melhor, eles tinham luxúria demais.

Mimados e orgulhosos, o salário do papai permitia que eles tivessem um quarto próprio, e renda suficiente para encher esse espaço com brinquedos, jogos e outros itens. Realmente, o milagre econômico transformou o Japão de purgatório a paraíso em três curtas décadas. Mas essa liberdade financeira levou a um grande comodismo, e com isso, à primeira geração de verdadeiros otaku.

Guardemos essa noção para depois. Por enquanto, tudo o que sabemos é que com eletrônicos não havia engano.

O mercado eletrônico de Akihabara pegou tanto impulso que a crise do petróleo foram meras lombadas na estrada rumo a dominância total. A verdadeira ameaça seria um fator doméstico, não internacional. Os negócios esqueceram de um componente essencial na estratégia de monopolizar o mercado: estacionamentos.

Yamada Denki, Sakuraya, Bic Camera e outras cadeias de lojas começaram a se espalhar pelos subúrbios, oferecendo preços baixos e uma experiência consumista mais agradável. Papai poderia dirigir o carro novinho em folha e brincar de chefe da casa por um dia. Mamãe pechinchadora ficaria sempre feliz em conseguir qualquer desconto que fosse, mesmo com os salários nas alturas. Enquanto essas práticas de vendas sensíveis mudaram o foco das vendas dos centros das cidades aos subúrbios, um vazio de consumidores se criou em Akihabara, esperando ser preenchido.


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De Local Para a Família a Paraíso Otaku



Mapa de my-coms publicado pela Sharp em outubro de 1982, como parte da campanha promocional do MZ-2000

Computadores amadores, ou my-coms, usaram esse momento de fraqueza para colocarem o pé na porta. Em 1976, um ano antes da Apple ser lançada, NEC Bit-INN abriu no 7º andar do Radio Kaikan, onde serviu como iniciador da futura revolução dos computadores pessoais. Nomes importantes como Sato Musen começaram a oferecer peças de computador em 1982, e o subsequente surgimento de jogos apresentando arte de anime atraiu uma nova espécie de nerd.

A demografia estava mudando de famílias com crianças para jovens homens de mochila, não diferente da geração anterior de engenheiros de rádio. Lentamente, lojas de computadores se espalharam pelo Radio Kaikan, empurrando lojas de eletrônicos para fora da porta. LaOX The Computer Kan, um gigante de 7 andares, abriu em 1990, abrigando computadores, eletrônicos e celulares.

Placa exibida no histórico local da NEC Bit-INN.)


Por volta de 1994, vendas de computadores ultrapassaram as de equipamentos eletrônicos, e o aguardado lançamento do Windows 95 - um evento cultural tanto quanto comercial - foi o último prego no caixão da velha Akiba.

O estágio 1 da transformação de Akihabara na terra santa dos otakus estava completa. Se bem que, enquanto usuários hardcore de PCs tinham fortes tendências otaku, nem todos os otakus usavam computadores. Se a cidade queria aumentar sua população nerd, deveria tornar as "fronteiras" mais fáceis de se atravessar através de produtos com grande penetração comercial, mas mantendo elementos repulsivos para nutrir uma forte subcultura.

Acabou que esse era um recurso natural em abundância no Japão. Videogames e mangá forneceram o material necessário para formar a ponte que ligaria microprocessadores e "moe".

Em 1994, um empregado da mega loja de computadores Sofmap abriu Tora no Ana, uma loja de dojinshis usados num apartamento minúsculo, sem saber que estava iniciando uma cadeia de eventos que mudaria permanentemente a cidade.

O país experimentou uma espécie de ressurgimento de animes entre 1995 e 97 com sucessos como "Neon Genesis Evangelion", "Sakura Taisen" e "Sailor Moon", criando demanda para bens auxiliares que forçaram essa pequena loja a começar a vender outros tipos de mercadoria, portanto solidificando itens otaku como um mercado viável. De uma hora pra outra, Tora no Ana se transformou de uma loja de dojinshis que era quase um buraco numa parede para uma gigante nacional dona de dois prédios de 7 andares no coração de Akihabara.

Um certo magnetismo otaku atraiu a cultura nerd para a cidade. K-Books, uma loja que fornecia serviços similares a Tora no Ana, expandiu de seu nicho em Ikebukuro para ajudar a conter uma demanda crescente. A fabricante de figures de Osaka, Kaiyodo, se expandiu para Shibuya e Kichijoji com níveis variados de sucesso, mas também acabaram indo parar na capital de neon do leste. Ambas estabeleceriam lojas no Radio Kaikan no final dos anos 90, expulsando os últimos vestígios de lojas de eletrônicos.

O fim dos aparelhos eletrônicos era óbvio e não surpreendeu ninguém, mas ficou a pergunta: por que otakus? Para entender como Akihabara pulou de meio esquisita para totalmente bizarra, precisamos explorar a natureza controladora dos otakus, bem como o profundo efeito que "Evangelion" teve na população.



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4 comentários:

  1. Otimo post, esse prédio da Radio Kaikan é a origem de todo o mal deve ser demolido.... 0_0

    Aguardando os proximos textos fuii o/

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  2. Post excelente, retrata muito bem a história por trás da transformação de Akihabara de feudo para o que é hoje.

    Como mencionou nomes famosos de animes da época que mudaram a indústria de animes, não pude deixar de notar a ausência de 2 fortes nomes que mudaram completamente a percepção das pessoas da época sobre animes: Uchuu Senkan Yamato e Kidou Senshi Gundam.

    Na expectativa dos próximos posts dessa série.

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    1. Olá Jeguy. Você tem razão ao falar sobre Gundam e Yamato, mas no contexto do post, estou falando de um ressurgimento, ou seja, o final de um período em que os animes foram realmente uma subcultura não muito popular. Isso vai ser melhor explicado na parte 2.

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  3. A popularização não só dos computadores mas da Internet a partir da metade da década de 90 também não tem algo a ver com a mudança radical que o bairro de Akihabara sofreu desde então? Afinal, a legião de fãs de animes pelo mundo só cresceu junto com eles.

    Outro nome que ajudou a popularizar os animes: Hayao Miyazaki e o aclamado "Sen to Chihiro no kamikakushi", "Spirited Away" ou simplesmente, "A Viagem de Chihiro"

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