Akihabara se tornou algo maior que si mesma. Ocultada pelo mito moderno do “Cool Japan”, nos desconectamos de sua essência bruta.
Tudo que percebemos na cidade é sua cultura nerd e novas tecnologias. Na verdade, no último século a área foi conduzida por empresários ousados sempre alinhados a novas tendências de mercado, sendo que mercadorias otaku são apenas o item mais recente numa longa linha de serviços. Nesta série eu espero oferecer uma perspectiva para trazer a ilusão mais perto da realidade, junto com uma apreciação renovada por Akihabara.
Através
dos próximos 4 posts, vamos mergulhar na história de Akihabara para descobrir
as circunstâncias que a permitiram evoluir de mercado negro para cidade de
eletrônicos, e da Meca otaku a queridinha da mídia. Grande parte da informação
vem dos livros “Akiba Confidential” e “Aprendendo com Akihabara: O Nascimento
de uma Personalópolis”, bem como pesquisas e observações pessoais feitas
vivendo no centro de Tóquio.
Na
Parte 1, vamos olhar os primeiros desenvolvimentos no local, antes até mesmo de
ser chamado de Akihabara, bem como apresentar as peças-chave da explosão de
popularidade dos animes em meados da década de 90, a ser debatida melhor na
Parte 2. Texto original publicado no blog Tokyo Scum.
Post de estreia do colaborador WL no Animecote. Podem entrar em contato com ele através de seu perfil no Twitter.
Post de estreia do colaborador WL no Animecote. Podem entrar em contato com ele através de seu perfil no Twitter.
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Começo
Humilde
A
primeira coisa importante que Akihabara fez foi queimar.
Em
1869, um incêndio arrasou a terra entre Kanda e Ueno, reduzindo as moradias a
restos fumegantes e dando boas vindas nada agradáveis ao recém instaurado
governo Meiji. Edo, rebatizada de Tóquio no ano anterior, continuava sendo um
barril de pólvora altamente habitado só esperando fagulhas aleatórias,
incêndio, ou chamas famintas de distritos vizinhos se espalharem
descontroladamente pela cidade. Foi considerado mais prudente usar a nova área
arrasada como uma maneira de impedir incêndios de se alastrar do que arriscar
recursos reconstruindo uma região.
Não
seria assim por muito tempo. No ano seguinte, o governo construiu um pequeno
templo xintoísta chamado Chinka-Sha, ou "Templo Extintor", no local
do velho castelo de Edo como vigia contra eventuais incêndios. Aparentemente os
cidadãos não foram muito bem informados disso, já que eles acreditaram que se
tratava de um templo dedicado a Akiba, divindade conhecida por controlar
chamas. Esse engano virou oficial quando o terreno ao redor do templo ganhou o
nome de Akiba no Hara, ou "Terra de Akiba".
Akihabara
começa sua história como uma espécie de porta de entrada para Tóquio, mas isso não duraria tanto. A localização da área no rio Kanda a conectava a
Baía de Tóquio, fazendo-a um local importantíssimo de comércio internacional.
Em 1890 a área foi conectada a Ueno através da Linha Tohoku, que foi estendida
até Tóquio em 1925, fazendo com que a estação (até então exclusivamente de
carga) fosse usada para transporte público como uma maneira de elevar turismo
como parte do projeto de recuperação depois do Grande Terremoto de Kanto de 1923.
Foi por essa época que um erro de escrita mudaria o nome de Akibahara (あきばはら) para Akihabara (あきはばら)- um engano razoável considerando que as leituras de Kanji de nomes próprios são tão confusas quanto os dialetos locais que os atrapalham.
Distribuidores,
atacadistas, o nome não importa: qualquer um inescrupuloso o bastante para
arranjar dinheiro não importando o método se estabeleceu no lugar que, em 1935,
era oficialmente designado como um mercado de frutas e legumes. Enquanto isso,
madeireiros e transportadores começaram a se assentar em habitações ao longo do
rio. A infraestrutura atraiu gente e capital. A tecnologia atraiu os primeiros
otakus: fanáticos por trens.
Trilhos
elétricos eram tecnologia de ponta, e com sua fartura de estações grandes ou pequenas,
a região de Kanda era o coração pulsante de onde todas as artérias de aço
partiam. Tetsudo Otoko, ou Homens Trem (como eles eventualmente seriam
nomeados), encontraram solidariedade quando o Museu de Transportes de Tóquio
abriu com grande festa em 1936. Com a mania por trens no ápice, ninguém
imaginaria que já haviam otakus arcaicos entre elesm preparando o solo para as
eventuais sementes do "moe" que serão discutidas melhor em posts futuros.
Em
1936, o Museu dos Transportes foi movido dos arredores da Estação de Tóquio
para um prédio reformado depois do Grande Terremoto de Kanto, dentro da
recém-desativada Estação Manseibashi, nas margens do rio Kanda. As exposições
foram novamente movidas para Saitama em 2007, para o Museu Ferroviário.
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A
Influência dos Conflitos Internacionais e a Guerra Interna de Preços
O
mercado mudou de verduras para válvulas eletrônicas em 1937 com a explosão da
Segunda Guerra Sino-Japonesa, mudando a atenção do país do comércio atacadista
para comunicações sem fio com propósitos militares. No começo dos anos 40,
peças eletrônicas viraram as mercadorias mais importantes do lugar e quitandas
de frutas começaram a falir. Akihabara, um bazar de equipamentos eletrônicos do
tamanho de uma cidade, manteve a máquina de guerra high-tech bem alimentada. O
gosto por rádios permaneceria por muito tempo depois da derrota japonesa nas
mãos dos Aliados.
Depois
da 2ª Guerra Mundial, o país estava dizimado, humilhado e empobrecido. Mas a
vida continua, especialmente para aqueles espertos o bastante para se
aproveitar do sistema. Para uma população faminta, arroz era um produto
precioso que valia mais que a própria vida. Mesmo assim, era superado pelo
rádio. Estudantes de engenharia da Universidade Tokyo Denki colocariam as
mochilas nas costas e vasculhariam o mercado atrás das melhores ofertas. Se o valor
de uma válvula eletrônica seria 1 sho, um rádio completo custaria 10 sho! Nada
mau para um universitário esfomeado rodeado por uma população igualmente
esfomeada.
Essa
farra não duraria muito tempo. O Comandante Supremo MacArthur proibiria o
comércio irregular em 1949. Na teoria, era parte de um grande projeto de
infraestrutura para alargar estradas e regularizar o comércio. Na prática, ele
acabou com o direito de assembléia dos cidadãos como uma forma de que nenhuma
brasa comunista se tornasse uma chama anti-americana.
Os
feirantes não aceitariam isso calados. O Sindicato de Comerciantes pressionou o
governo, e o governo de Tóquio e a Ferrovia Nacional Japonesa responderam cedendo
aos mercadores terrenos perto da Estação de Akihabara. Os comerciantes burlaram
a imposição de MacArthur fornecendo recursos para construção de lojas de tijolo
e concreto. Sato Musen, Ishimaru Denki e outras companhias importantes
começaram aqui, como grandes prédios em comparação às barraquinhas de feirantes.
Os
sete andares do Radio Kaikan seriam o mais icônico deles. Inaugurado em 1962,
traçando tendências através das lojas que abrigou ao longo dos anos, revelando a
história da cidade como camadas de sedimentos na crosta terrestre.
Os vendedores de eletrônicos agora estavam organizados e prontos para faturar em cima do milagre econômico pós-guerra. Através dos anos 60, rádios, junto com máquinas de lavar e geladeiras formavam a santíssima trindade dos eletrônicos domésticos. O povo ironicamente se referia a esses produtos como "Mikusa no Kamudakara", ou Três Tesouros Sagrados, título geralmente reservado para a espada, pérola e espelho da mitologia xintoísta que serviam como símbolos do imperador. Esses bens revolucionaram a vida das pessoas, para depois evoluir para a trilogia de TVs, freezers e aparelhos de som.
A
esperança colocada nos eletrônicos era uma metáfora perfeita para a visão
otimista do povo para o futuro. Essa veneração de eletrônicos e tecnologia deu
poder para a geração atual, para então apunhalar a próxima. O futuro fantástico
prometido pela Era Espacial literalmente ficou sem combustível devido à crise
do petróleo dos anos 70, permitido que a realidade atual de problemas sociais e
ambientais ultrapassasse essa ilusão.
Crianças
que cresceram com a aterrissagem na lua e com Ultraman e sua Patrulha
Científica caçando monstros gigantes estavam descobrindo, da pior maneira, que a
fronteira final ficava mais perto do que eles imaginavam - provavelmente atrás de
uma mesa de escritório.
Com
os sonhos destruídos, a juventude foi tomada por um sentimento de perda e
traição semelhante a quando o país assolado pela guerra recebeu a notícia de
que seu imperador, diferente do que eles haviam acreditado a vida toda, não
descendia dos deuses. O Japão pós-guerra compensou essa perda focando em
reconstruir o país e colher os frutos da industrialização. As crianças dos anos
70 não tinham essa luxúria - ou melhor, eles tinham luxúria demais.
Mimados
e orgulhosos, o salário do papai permitia que eles tivessem um quarto próprio,
e renda suficiente para encher esse espaço com brinquedos, jogos e outros
itens. Realmente, o milagre econômico transformou o Japão de purgatório a
paraíso em três curtas décadas. Mas essa liberdade financeira levou a um grande
comodismo, e com isso, à primeira geração de verdadeiros otaku.
Guardemos
essa noção para depois. Por enquanto, tudo o que sabemos é que com eletrônicos
não havia engano.
O
mercado eletrônico de Akihabara pegou tanto impulso que a crise do petróleo
foram meras lombadas na estrada rumo a dominância total. A verdadeira ameaça
seria um fator doméstico, não internacional. Os negócios esqueceram de um
componente essencial na estratégia de monopolizar o mercado: estacionamentos.
Yamada
Denki, Sakuraya, Bic Camera e outras cadeias de lojas começaram a se espalhar
pelos subúrbios, oferecendo preços baixos e uma experiência consumista mais
agradável. Papai poderia dirigir o carro novinho em folha e brincar de chefe da
casa por um dia. Mamãe pechinchadora ficaria sempre feliz em conseguir qualquer
desconto que fosse, mesmo com os salários nas alturas. Enquanto essas práticas
de vendas sensíveis mudaram o foco das vendas dos centros das cidades aos
subúrbios, um vazio de consumidores se criou em Akihabara, esperando ser preenchido.
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De
Local Para a Família a Paraíso Otaku
Mapa
de my-coms publicado pela Sharp em outubro de 1982, como parte da campanha
promocional do MZ-2000
A
demografia estava mudando de famílias com crianças para jovens homens de
mochila, não diferente da geração anterior de engenheiros de rádio. Lentamente, lojas de computadores se espalharam pelo Radio Kaikan, empurrando lojas de
eletrônicos para fora da porta. LaOX The Computer Kan, um gigante de 7 andares,
abriu em 1990, abrigando computadores, eletrônicos e celulares.
Por
volta de 1994, vendas de computadores ultrapassaram as de equipamentos
eletrônicos, e o aguardado lançamento do Windows 95 - um evento cultural tanto
quanto comercial - foi o último prego no caixão da velha Akiba.
O estágio
1 da transformação de Akihabara na terra santa dos otakus estava completa. Se
bem que, enquanto usuários hardcore de PCs tinham fortes tendências otaku, nem
todos os otakus usavam computadores. Se a cidade queria aumentar sua população
nerd, deveria tornar as "fronteiras" mais fáceis de se atravessar
através de produtos com grande
penetração comercial, mas mantendo elementos repulsivos para nutrir uma forte
subcultura.
Acabou
que esse era um recurso natural em abundância no Japão. Videogames e mangá
forneceram o material necessário para formar a ponte que ligaria
microprocessadores e "moe".
Em
1994, um empregado da mega loja de computadores Sofmap abriu Tora no Ana, uma
loja de dojinshis usados num apartamento minúsculo, sem saber que estava
iniciando uma cadeia de eventos que mudaria permanentemente a cidade.
O
país experimentou uma espécie de ressurgimento de animes entre 1995 e 97 com
sucessos como "Neon Genesis Evangelion", "Sakura Taisen" e "Sailor Moon", criando
demanda para bens auxiliares que forçaram essa pequena loja a começar a vender
outros tipos de mercadoria, portanto solidificando itens otaku como um mercado
viável. De uma hora pra outra, Tora no Ana se transformou de uma loja de dojinshis
que era quase um buraco numa parede para uma gigante nacional dona de dois
prédios de 7 andares no coração de Akihabara.
Um
certo magnetismo otaku atraiu a cultura nerd para a cidade. K-Books, uma loja que
fornecia serviços similares a Tora no Ana, expandiu de seu nicho em Ikebukuro
para ajudar a conter uma demanda crescente. A fabricante de figures de Osaka, Kaiyodo, se expandiu para Shibuya e Kichijoji com níveis variados de sucesso,
mas também acabaram indo parar na capital de neon do leste. Ambas estabeleceriam
lojas no Radio Kaikan no final dos anos 90, expulsando os últimos vestígios de
lojas de eletrônicos.
O
fim dos aparelhos eletrônicos era óbvio e não surpreendeu ninguém, mas ficou a
pergunta: por que otakus? Para entender como Akihabara pulou de meio esquisita
para totalmente bizarra, precisamos explorar a natureza controladora dos
otakus, bem como o profundo efeito que "Evangelion" teve na população.
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Otimo post, esse prédio da Radio Kaikan é a origem de todo o mal deve ser demolido.... 0_0
ResponderExcluirAguardando os proximos textos fuii o/
Post excelente, retrata muito bem a história por trás da transformação de Akihabara de feudo para o que é hoje.
ResponderExcluirComo mencionou nomes famosos de animes da época que mudaram a indústria de animes, não pude deixar de notar a ausência de 2 fortes nomes que mudaram completamente a percepção das pessoas da época sobre animes: Uchuu Senkan Yamato e Kidou Senshi Gundam.
Na expectativa dos próximos posts dessa série.
Olá Jeguy. Você tem razão ao falar sobre Gundam e Yamato, mas no contexto do post, estou falando de um ressurgimento, ou seja, o final de um período em que os animes foram realmente uma subcultura não muito popular. Isso vai ser melhor explicado na parte 2.
ExcluirA popularização não só dos computadores mas da Internet a partir da metade da década de 90 também não tem algo a ver com a mudança radical que o bairro de Akihabara sofreu desde então? Afinal, a legião de fãs de animes pelo mundo só cresceu junto com eles.
ResponderExcluirOutro nome que ajudou a popularizar os animes: Hayao Miyazaki e o aclamado "Sen to Chihiro no kamikakushi", "Spirited Away" ou simplesmente, "A Viagem de Chihiro"